Hoje (21), a Universal Music apresenta uma nova edição em vinil de “Chico Buarque de Hollanda nº4”, o quarto álbum de Chico Buarque na companhia, que foi lançado pela Phillips em 1970 e agora ganha uma nova versão, em vinil verde + azul translúcido esfumaçado. Saiba mais no site da UMusic Store.
O que dizer de um disco que abre em delicioso clima de gafieira jazz, com “Essa Moça Tá Diferente”, traz duas indiscutíveis obras-primas da canção buarqueana — “Samba e Amor” e “Rosa dos Ventos” —, mais um belo exemplar da rara e iluminada parceria com Tom Jobim, “Pois É”, e um clássico do cancioneiro brasileiro, “Gente Humilde”, que reúne nas assinaturas o legendário violonista Garoto, Vinicius de Moraes e Chico? Bem, isso não é nem metade da história — são apenas cinco das doze faixas deste álbum que, em abril de 1970, revelou um jovem genial, Chico Buarque, em processo de amadurecimento, abrindo as asas para voar alto depois de 14 meses de autoexílio.
Gestado no ano em que o artista teve que se refugiar em Roma, logo depois que a ditadura militar apertou o garrote (com a assinatura do AI-5, em dezembro de 1968), o quarto LP de Chico nasceu em condições complicadas.
Aos 25 anos, pai de família (Sílvia Buarque nascera em março de 1969), endividado e com dificuldades para estabelecer a carreira na Europa, ele teve prazos curtos para criar novas canções (a gaveta que havia garantido o repertório dos três primeiros álbuns já tinha sido raspada) e, para registrá-las, com uma dificuldade adicional: era preciso gravar as bases no Brasil, e a voz, na Itália. “São as músicas mais arrancadas a fórceps que eu tenho”, contou Chico em entrevista publicada no livro “O som do Pasquim”, que atualizava uma conversa com os jornalistas do semanário carioca, publicada em 1975.
O produtor Manoel Barenbein passou duas semanas em Roma na função de extrair de Chico o material novo. “Ficava sentado diante de mim a dois metros de distância, eu terminando a música e dizendo: ‘Espera aí, Manoel, estou terminando aqui’… Tem músicas que eu terminei nas coxas”, lembrou o artista, nessa mesma conversa com “O Pasquim”.
Esse certamente não é o caso de “Samba e Amor”, lirismo em estado quase puro, com referências reais do cotidiano de Chico e Marieta em Roma (o cobertor de lã citado é um deles). Também não se aplica a “Rosa dos Ventos”, que prenuncia o Chico maduro de “Construção” no uso das proparoxítonas e na sofisticação formal, com mudanças de tom nada fáceis e um arranjo épico cinematográfico de Magro Waghabi, do MPB4, que bem pode ter usado referências do maestro italiano Ennio Morricone (com quem Chico trabalhou em outro disco lançado em 1970, “Per un Pugno di Samba”).
Em “Agora Falando Sério”, Chico, pós-moderno, volta-se contra a própria obra e a própria imagem pública, passando seu recado com estocadas certeiras: “Dou um chute no lirismo/ um pega cachorro e um tiro no sabiá/ dou um fora no violino, faço a mala e corro pra não ver a banda passar”. E canta tudo isso acompanhado por levadas de rumba flamenca e ieieiê, como se tivesse por banda uma trupe de bandoleiros de faroeste.
Cheios de surpresas, os arranjos — não creditados individualmente — são de Erlon Chaves (inconfundível e de apelo atemporal em “Essa Moça Tá Diferente”, que foi hit na França no começo dos anos 1990), César Camargo Mariano e do já citado Magro, em fase especialmente inspirada. Em “Cara a Cara”, uma das favoritas de Chico neste LP, ele e o MPB4 fazem a faixa lançada originalmente em italiano (num compacto) avançar anos-luz rumo à modernidade.
Outra grande pérola que se destaca é “Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita Pra Virar Casaca de Neném”, um samba em resposta à provocação do sambista, ídolo de Chico, nos moldes de Noel Rosa, mas incorporando o telecoteco e os porongondons de Ciro, mestre da caixa de fósforo e da divisão sincopada.
Entre a reverência e a ousadia, “Chico Buarque de Hollanda Nº 4” é um disco histórico que marca um passo importantíssimo na carreira do artista. E da música popular brasileira também.