Disco apresenta duas músicas inéditas dos compositores cearenses e tem as participações de Amelinha, Frejat, Xand Avião e do próprio Belchior, ouvido em dueto virtual com Fagner na faixa ‘A palo seco’
Por Mauro Ferreira
Outubro de 2022
São muitas as vozes que estão reverberando em discos e shows o cancioneiro angustiado de Antonio Carlos Belchior (26 de outubro de 1946 – 30 de abril de 2017) desde que, há cinco anos, o artista saiu de cena, aos 70 anos. Fagner tem legitimidade para se impor sobre elas porque, como diz o título do álbum lançado pela Universal Music em 13 de outubro, dia do 73º aniversário de Fagner, o cantor cearense foi de fato parceiro do amigo e conterrâneo.
E que parceria! Basta dizer que ambos assinam juntos um dos maiores sucessos da música popular brasileira, “Mucuripe” (1972), canção melancólica que vem sendo amplificada há 50 anos desde que foi lançada por Fagner e por ninguém menos do que Elis Regina (1945 – 1982), sendo popularizada a partir de 1975 em gravação de Roberto Carlos. No álbum “Meu Parceiro Belchior”, “Mucuripe” reaparece em registro ao vivo, captado em show na cidade do Rio de Janeiro (RJ), com o coro do público que nunca deixou de cantar essa obra-prima. Além de cantar, Fagner toca violão.
Gravado entre fevereiro e abril com produção musical e arranjos de Robertinho de Recife, o álbum “Meu Parceiro Belchior” faz o inventário de canções e histórias, puxando o fio de uma memória que remete ao fim dos anos 1960, época em que Fagner, Belchior, Fausto Nilo e Amelinha, entre outros artistas cearenses, se afinavam musical e ideologicamente nos bares de Fortaleza (CE), em ambiente juvenil regido pela contracultura.
A vida impôs distâncias. Cada um seguiu o próprio rumo após o movimento migratório para as cidades de Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP) em busca de maior visibilidade e oportunidades profissionais. Mas as conexões daquele tempo de juventude – que abarca o período em que Fagner e Belchior moraram juntos no Rio – são eternas e ecoam no disco sobretudo através das duas músicas inéditas que adicionam valor documental ao álbum “Meu Parceiro Belchior”.
Encontradas em 2021 em registros de órgãos da censura da ditadura que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, tendo chegado a Fagner através do pesquisador musical Marcelo Fróes, “Alazão” e “Posto em sossego” ganham os primeiros registros fonográficos no disco “Meu Parceiro Belchior”, ampliando oficialmente a parceria de Fagner com Belchior. Uma terceira música, “Bolero em português”, pode também ser considerada inédita, pois até então já tinha sido gravada de forma obscura pela cantora Cláudia Versiani em 1978.
Escrita com adesão do poeta cearense Fausto Nilo, letrista recorrente na discografia de Fagner, “Alazão” é flash nostálgico dos tempos de bares e mares de Fortaleza (CE), mas a nostalgia é exaltada com alegria, sem melancolia.
“Bolero em português” – uma das últimas músicas feitas por Fagner com Belchior no apartamento em que moravam no Rio – é canção de registro suave, de ternura potencializada pelo canto doce de Amelinha, cantora que também integrou a turma conhecida como Pessoal do Ceará. Ao vir ao mundo, presumivelmente entre 1971 e 1972, “Bolero em português” foi dedicado pelos compositores parceiros à Angela Maria (1929 – 2018), cantora que sabia traduzir o sentimento brasileiro na voz lacrimejante. A gravação de Fagner é adornada pelos violões de Ney Marques e a viola de 12 cordas manuseadas com maestria por Robertinho de Recife.
“Posto em sossego” é balada que chora “um pranto preto de asfalto”, como diz a letra que versa poeticamente sobre a falta de comunicação, em sintonia com o sentido de “Na hora do almoço” (Belchior, 1971), primeira música de Belchior a ser ouvida pelo Brasil, através de festival. Até então inédita na voz de Fagner, a canção “Na hora do almoço” é turbinada pela guitarra de Robertinho de Recife, áspera e cortante como a poesia do cancioneiro de Belchior.
Outro clássico inicial de Belchior, a canção “A palo seco” (1973) já tinha sido gravada por Fagner no segundo álbum do cantor, “Ave Noturna” (1975). Só que o atual registro tem um diferencial: a voz do próprio Belchior, extraída da gravação do antológico álbum “Alucinação” (1976), é a primeira a ser ouvida no disco de Fagner, em ato de generosidade do parceiro. Depois, Fagner entra como a segunda voz até que os cantos dos artistas se alternam na faixa de valor afetivo.
Música até então inédita na voz de Fagner, “Galos, noites e quintais” (1976) foi formatada somente com o toque de Robertinho de Recife nas guitarras e violões, assim como “Moto 1” (1973), parceria de Fagner com Belchior apresentada ao Brasil há 49 anos no primeiro álbum de Fagner.
Parceria de Fagner e Belchior que emergiu nos anos 1980, em álbum da fase tecnopop da discografia de Fagner, “Contramão” (1985) se diferencia no disco pelas presenças de músicos de outra cena musical carioca – como Alexandre Kassin (baixo), Marcelo Costa (bateria e percussão) e Humberto Barros (teclados) – e pela participação de Roberto Frejat na voz e no violão. O convite a Frejat conecta o atual registro fonográfico de “Contramão” à gravação original de 1985, feita com a participação de Cazuza (1958 – 1990), parceiro de Frejat na banda carioca Barão Vermelho.
Canção dos primórdios da parceria de Fagner com Belchior, gravada em 1972 por Wilson Simonal (1938 – 2000), “Noves fora” soa extremamente atual na pegada forrozeira do cantor Xand Avião, convidado da gravação formatada por Emanuel Dias (arranjo, teclados e percussão) com o toque da sanfona de Nonato Dias.
Um dos títulos menos conhecidos da parceria de Fagner com Belchior, tendo sido gravada somente por Fagner nos álbuns “Orós” (1977) e “Canta en Español” (1981), “Romanza” ressurge no álbum “Meu Parceiro Belchior” com a pegada roqueira do power trio formado pelos irmãos Arthur Monticelli (guitarra), Bruno Monticelli (bateria) e Vitor Monticelli (baixo).
Canção já gravada por Fagner no álbum “Pássaros Urbanos” (2014), “Paralelas” (1975) aparece em registro ao vivo, extraído da mesma gravação de show que gerou a faixa “Mucuripe”. Ouvir o coro do público cantando toda a letra de Belchior é perceber que, sim, Belchior vive. No canto do público e no canto do parceiro Fagner neste disco que constitui relicário de canções e emoções eternas. Viva Belchior!