A elegância conjugada a uma voz quente e sentimental sempre foi a marca de uma das maiores intérpretes da música brasileira de todos os tempos, Elizeth Cardoso (1920-1990), cujo centenário se completa no próximo dia 16 de julho, merecendo grande celebração. A Universal Music, que hoje detém a maior parte do acervo da cantora, faz a sua parte, trazendo um grande presente para os fãs. Entram em todas as plataformas de streaming 26 produtos da cantora e três playlists exclusivas. São 17 álbuns de carreira, um coletivo, um EP com quatro faixas raras e sete compilações. Estes lançamentos se somam a outros 14 álbuns de carreira e cinco coletâneas que já se encontravam devidamente disponibilizados, deixando a obra da Divina bem representada nas mídias digitais. A entrada dessa nova leva é uma ótima oportunidade para que velhos fãs se unam à nova geração para redescobrir esta que foi, juntamente com Carmen Costa (por coincidência, também comemorando seu centenário neste mês de julho), das primeiras grandes cantoras negras populares do país, projetadas pela “Era do Rádio”.
O que pouca gente sabe é que, de todas as suas contemporâneas, Elizeth foi uma das que mais demoraram para chegar ao grande público e atingir o sucesso, via rádio, TV e disco. Estreou aos seis anos, cantando na Kananga do Japão, uma das muitas “sociedades” dedicadas à dança e ao carnaval carioca. Aos 10, teve de sair da escola para trabalhar no que aparecesse pela sua frente – de charutaria a salão de cabeleireiros; aos 16, cantou pela primeira vez numa rádio, a Guanabara, e a partir da virada dos anos 1930 para os 40, passou a trabalhar como taxi-girl e depois como crooner nos famosos dancings cariocas. Em 1948, seu destino começou a dar sinais de mudança, quando, durante uma temporada no Dancing Belas Artes, conheceu o compositor, radialista e jornalista Evaldo Ruy, com quem teve um affair e que atuou dali até sua morte prematura, em 54, como um verdadeiro padrinho musical.
Enfim, aos 30 anos de idade, depois de alguns contratempos, Elizeth foi contratada pela pequena Todamérica. Seu disco de estreia estourou a romântica “Canção de amor”, de Chocolate e Elano de Paula. O êxito foi tanto que em pouco tempo já integrava o elenco da famosa Rádio Tupi, além de trabalhar nas boates mais chiques do Rio de Janeiro, como Casablanca e Vogue, e viver entre Rio e São Paulo, onde atuava ainda na rádio e TV Record. Logo, tornou-se a preferida dos grandes intelectuais e músicos de seu tempo, gozando sempre de muito prestígio na imprensa, inclusive sendo sempre destacada entre “as dez mais elegantes”. Após uma rápida passagem pela Continental, foi a partir de 56, quando firmou contrato com a Copacabana (hoje incorporada à Universal Music) é que seguiu numa escala ascendente de sucesso também nos discos, mantendo-se na empresa até 1978, gravando às vezes dois ou três álbuns por ano, num total de 33 dos 47 LPs de carreira que nos deixou – fora inúmeros discos de 78 rotações, compactos e participações.
Cada disco de Elizeth era um misto do hit parade da época, algo das décadas que o precederam, com alguns lançamentos seus em primeira mão, dentre os quais os sambas-canções “Canção de amor”, “Dá-me tuas mãos”, “Nossos momentos”, “Canção da manhã feliz”, “Tudo é magnífico”, “Meiga presença”, “Apelo” e alguns mais sacudidos, como “É luxo só”, “Deixa andar”, “Naquela mesa”, sem contar o samba-rock dançante “Eu bebo sim”, seguramente a faixa que mais trouxe a cantora para perto de um público mais jovem, devido a seu groove moderníssimo. Há outros sambas que ela não lançou, mas suas regravações ficaram célebres em sua voz, como “Sei lá”, “Mangueira”, “Mulata assanhada”, “Na cadência do samba”, o inesquecível “Barracão”, além de “Tem que rebolar”, em dueto com Cyro Monteiro, seu parceiro no “Bossaudade”, que apresentaram juntos na TV Record nos idos de 1965 e 66.
Elizeth teve ainda papel importante na transição da tradicional para a moderna canção brasileira, tendo participado de algumas gravações iniciais da bossa nova, com João Gilberto ao violão, e gravado tanto com conjuntos regionais, como o de Jacob do Bandolim, quanto com outros mais jazzísticos, como o de Moacyr Silva e do próprio Zimbo Trio, que tornou o som da bossa mais explosivo, nos anos 1960. A propósito, a Divina dividiu dois álbuns com o Zimbo, que brevemente serão disponibilizados, completando o catálogo da cantora na Universal Music – “Balançam na Sucata” (1969) e “É de Manhã” (1970). Por ora, além dos álbuns originais, entram nas plataformas as compilações “Super Divas” (2012), “Bis – Cantores do Rádio” (2000), “Disco de Ouro – Vol. 2” (1979), “Elizeth Cardoso – Vols. 1, 2 e 3”, lançados entre 1971 e 72; “A Exclusiva” (1970), além de três playlists temáticas: “Elizeth Cardoso com o Samba no Pé”, “Elizeth Cardoso Muito Romântica” e “Elizeth Cardoso Revive Clássicos da Música Brasileira”.
Segue a listagem dos álbuns originais lançados em streaming, com algumas de suas respectivas faixas mais representativas:
– “Fim de Noite” (1958) – regravações de “Negro telefone”, “Culpe-me”, “Segredo”, “Último desejo”, “Feitio de oração”, “Prece ao vento” e “No rancho fundo”.
– “Naturalmente” (1958) – “É luxo só”, “Jogada pelo mundo” e “Na cadência do samba”.
– “Magnífica” (1959) – “Cidade do interior”, “Velhos tempos” e “Aula de matemática”.
– “A Meiga Elizeth Nº2” (1962) – “Deixa andar”, “Tudo é magnífico” e “Moeda quebrada”.
– A Meiga Elizeth Nº4 (1963) – “Balada da solidão” e “Nosso cantinho”.
– “A Meiga Elizeth Nº5” (1964) – “Canção que nasceu do amor” e “Diz que fui por aí”.
– “400 anos de Samba” (1965) – “O meu pecado”.
– “Elizeth Sobe o Morro” (1965) – “A flor e o espinho”, “Luz negra”, “Malvadeza Durão”, “Folhas no ar”, “Minhas madrugadas” e “Sim”.
– “A Bossa Eterna de Elizeth e Cyro” (1966) – “Tem que rebolar” (com Cyro Monteiro).
– “Muito Elizeth” (1966) – “Mundo melhor”, “Lamento”, “Cidade vazia”, “Sem mais adeus”, “Meiga presença” e “Apelo”.
– “A Enluarada Elizeth” (1967) – “Melodia sentimental”, “Meu consolo é você”, “Carinhoso”, “Demais” e “Seleção de sambas da Mangueira”.
– “Viva o Samba – Elizeth Cardoso, Francineth, Cyro Monteiro, Roberto Silva” (1967) – “Meu drama (Senhora tentação)”.
– “A Bossa Eterna de Elizeth e Cyro Nº2” (1969) – “Louco” e “Sei lá, Mangueira”.
– “Falou e Disse” (1970) – “Corrente de aço”, “É de lei”, “Refém da solidão”, “Aviso aos navegantes”, “Foi um rio que passou em minha vida” e “A flor de laranjeira”.
– “Feito em Casa” (1974) – “Água de sereno” e “Peso dos anos”.
– “Elizeth Cardoso” (1976) – “Minha verdade”, “Entenda a rosa” e “De partida”.
– “Live in Japan” (1977) – “Barracão”, “Naquela mesa”, “Apelo”, “É luxo só”, “Manhã de carnaval”, “A noite do meu bem” e “Última forma”.
– “A Cantadeira do Amor” (1978) – “Deixa”, “Até pensei”, “Velho arvoredo” e “Acontece”.
– “Elizeth Cardoso” (EP com 4 faixas raras) – “Trinta e um de dezembro”, “Chuvas de verão” e Quarto vazio” (as três de 1957), além de “Balão apagado”, de 1961.
Mais informações sobre cada álbum:
– “Fim de Noite” (1958) – Álbum editado originalmente no formato “LP de 10 polegadas”, com oito faixas, trazendo na ocasião mais quatro quando foi reeditado em “12 polegadas” – “Culpe-me”, “Segredo”, “Negro telefone”, todas de Herivelto Martins (com parceiros), lançadas num álbum-tributo ao compositor, além de “Nunca é tarde” (João Pinto). Destacam-se as regravações de três clássicos de nosso cancioneiro: “Último desejo” (Noel Rosa), “Feitio de oração” (Vadico/ Noel), “Prece ao vento” (Gilvan Chaves) e “No rancho fundo” (Ary Barroso/ Lamartine Babo).
– “Naturalmente” (1958) – O destaque deste álbum vai para “É luxo só”, samba que Ary Barroso fez com Luiz Peixoto em 1956 pensando na Divina, especialmente para o musical Mister Samba, de Carlos Machado. O espetáculo de grande sucesso estreou na boate Night and Day, da Cinelândia carioca, e tinha como mote a própria trajetória de Ary, que contribuiu neste disco com outra inédita, “Jogada pelo mundo”. O samba-canção “Suas mãos” (Pernambuco/ Antonio Maria), o sambão “Na cadência do samba” (Luiz Bandeira), cuja versão instrumental de Waldir Calmon foi tema do “Canal 100” nos cinemas da época, e a valsa “Olha-me, diga-me” (Tito Madi) são dignas de nota.
– Magnífica (1959) – Este álbum é todo dedicado a canções de Marino Pinto com seus parceiros famosos, como Mario Rossi (“Cidade do interior”), Carlos Lyra (“Velhos tempos”, lançada por Dalva de Oliveira) e Tom Jobim (“Aula de matemática”, criação de Sylvia Telles).
– “A Meiga Elizeth Nº2” (1962) – Este álbum abre com o samba carnavalesco “Deixa andar” (Jujuba), grande sucesso da cantora, que defende ainda duas joias de Haroldo Barbosa e Luiz Reis, o sambalanço “Moeda quebrada” e o samba-canção “Tudo é magnífico”, outro grande hit de sua carreira, além de recriar o clássico de Tito Madi, “Cansei de ilusões”.
– “A Meiga Elizeth Nº4” (1963) – Este disco que não obteve muito êxito à época, mas vale ser redescoberto por suas canções de Billy Blanco (“Balada da solidão”, “Lado bonito de um mal”), da dupla estourada naquele tempo, Evaldo Gouveia e Jair Amorim (“Nosso cantinho”, “Existe alguém”), Silvio César (“Seu José”), Fernando Lobo (“Quando vier o sol”), entre outros.
– “A Meiga Elizeth Nº5” (1964) – Este, também um disco com bons compositores, mas sem maiores hits. Destaque para as recriações de “Canção que nasceu do amor” (Rildo Hora/ Clovis Melo), já gravada por Cauby Peixoto, e “Diz que fui por aí” (Zé Kéti/ Hortênsio Rocha), primeiro hit de Nara Leão.
– “400 anos de Samba” (1965) – O ano do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro foi amplamente comemorado em 1965, seja pelas escolas de samba cariocas, concurso de música carnavalesca promovido pela prefeitura e diversos lançamentos pelas gravadoras, que editaram discos especialmente para a data. Neste álbum de Elizeth, apenas o samba-título de Luiz Antônio é alusivo ao tema. Entre as demais, o destaque vai para o samba “O meu pecado”, da incendiária dupla Nelson Cavaquinho e Zé Kéti.
– “Elizeth Sobe o Morro” (1965) – Um dos discos mais importantes da Divina. Aqui as turmas do show “Rosa de Ouro” e das noitadas do restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, grande “point” da intelectualidade e da música daquele tempo, são devidamente incorporadas ao seu repertório, incluindo Nelson Cavaquinho (“Vou partir”, “A flor e o espinho”, “Luz negra”), Zé Kéti (“Malvadeza durão”), Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho (“Folhas no ar”), Paulinho da Viola e Candeia (“Minhas madrugadas”), Cartola (“Sim”), entre outros.
– “A Bossa Eterna de Elizeth e Cyro” (1966) – O programa “Bossaudade” apresentado pela dupla Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro na TV Record, entre 1965 e 66, rendeu dois álbuns. O primeiro, com ele ainda no ar, marcou época, incluindo pot-pourris incendiários de samba, à moda do “Dois na Bossa”, de Elis Regina e Jair Rodrigues, além de outros deliciosos exemplares do gênero gravados separadamente, como “Tem que rebolar”.
– “Muito Elizeth” (1966) – Um novo e requintado álbum com a assinatura do produtor Moacyr Silva renovava mais uma vez o som da cantora, dividindo-se entre o acompanhamento de regional (“Mundo melhor” e “Lamento”, ambas de Pixinguinha e Vinicius de Moraes) e o de uma cozinha mais bossa-jazz, com influência da “MPB” nascente, destacando “Cidade vazia” (Baden Powell/ Lula Freire), “Sem mais adeus” (Francis Hime/ Vinicius) e dois sambas-canções que se tornariam seus grandes emblemas vida afora, “Meiga presença” (do filho Paulo Valdez, com Otávio de Moraes) e “Apelo” (Baden Powell/ Vinicius).
– “A Enluarada Elizeth” (1967) – Após cantar a “Melodia sentimental”, de Villa-Lobos com letra da poeta Dora Vasconcellos, Elizeth além de “Divina”, passou à “Enluarada”, acumulando a partir de então dois epítetos. Neste LP, além da canção citada, reviveu dois hits de Orlando Silva, o samba carnavalesco “Meu consolo é você” e o eterno samba-choro “Carinhoso”. Também recriou o samba-canção bossanovista “Demais”, do repertório de Sylvia Telles e Maysa, e entoou um longo “Seleção de sambas da Mangueira”.
– “Viva o Samba – Elizeth Cardoso, Francineth, Cyro Monteiro, Roberto Silva” (1967) – Este álbum coletivo valoriza os compositores das escolas de samba carioca, até então bem pouco gravados e conhecidos. Coube a Elizeth defender três deles, o futuro clássico “Meu drama (Senhora tentação)”, de Silas de Oliveira, do Império Serrano, que anos depois seria sucesso de Roberto Ribeiro; e dois menos conhecidos, “Festas tradicionais do Rio de Janeiro”, de Ledi Goulart e Hinha, da Mocidade Independente de Padre Miguel, e “Perdi a namorada”, dos portelenses Catoni, Jabolô e Waltenir.
– “A Bossa Eterna de Elizeth e Cyro Nº2” (1969) – Mais um álbum da dupla que apresentou o “Bossaudade” na TV Record. Nele, Elizeth reviveu “Louco”, de Wilson e Henrique Batista, sucesso de Aracy de Almeida no carnaval de 1947, “Sei lá, Mangueira” (Paulinho da Viola/ Hermínio Bello de Carvalho), que foi defendida num festival daquele ano por Elza Soares, sendo novamente sucesso em sua voz, além de outros medleys azeitados em duo com o Formigão.
– “Falou e Disse” (1970) – Além de ser um álbum de ótimo repertório, Elizeth teve aqui a primazia de lançar João Nogueira como compositor em “Corrente de aço”. Defendeu ainda belas parcerias de Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro (“É de lei”, “Refém da solidão”, “Aviso aos navegantes”), regravou o hit de Paulinho da Viola da época, “Foi um rio que passou em minha vida”, e trouxe um belo samba de roda da Bahia, “A flor de laranjeira”.
– “Feito em Casa” (1974) – Aproveitando a grande explosão mercadológica do samba nos anos 70, sobretudo após o estouro de Martinho da Vila e Clara Nunes, Elizeth fez um álbum em que gravava partido alto, como “Água de sereno”, de Romildo e Toninho, que acabavam de estourar “Conto de areia” na voz de Clara, e sambas derramados como “Peso dos anos”, de Candeia e Walter Rosa.
– “Elizeth Cardoso” (1976) – Aqui também um álbum com a prevalência do samba. Vale destaque para a até então inédita “Minha verdade”, de Dona Ivone Lara, ainda antes da fama, com Délcio Carvalho; “Entenda a rosa”, de João Nogueira, e uma inédita da dupla João Bosco e Aldir Blanc, “De partida”.
– “Live in Japan” (1977) – Um dos melhores da Divina foi este “Live in Japan”, pioneiro álbum gravado por uma artista brasileira naquele país, em que ela realizava também sua primeira turnê. O repertório é irrepreensível, trazendo apenas clássicos da música brasileira, alguns sempre associados a seu nome (“Barracão”, “Naquela mesa”, “Apelo”, “É luxo só”, “Manhã de carnaval”) e outros igualmente emblemáticos (“A noite do meu bem”, “Última forma”).
– “A Cantadeira do Amor” (1978) – Este álbum duplo marcou o fim de seu contrato com a Copacabana. São 26 músicas que fazem um passeio por várias fases da história da música brasileira, incluindo alguns de nossos maiores compositores, como Chico Buarque (“Até pensei”), Hélio Delmiro e Paulo Cesar Pinheiro (“Velho arvoredo”), Noel Rosa (“Século do progresso”), Baden Powell e Vinicius de Moraes (“Deixa”) e Cartola (“Acontece” e “Autonomia”).
Extra:
– “Elizeth Cardoso” (EP 4 faixas) – Pequena coletânea inédita de quatro faixas, incluindo “Trinta e um de dezembro” e a regravação do sucesso de Francisco Alves, depois revivido por Caetano Veloso, “Chuvas de verão”, ambas do 10 polegadas “Música e Poesia de Fernando Lobo” (1957), do qual fazia parte ainda “Bom é querer bem”, que está incluída no álbum da série “Bis Cantores do Rádio”. Outro destaque é Quarto vazio”, do LP “Um Compositor em Dois Tempos – Jubileu de Prata de Herivelto Martins” (também de 1957), que trazia cinco números com a cantora, sendo esta a única que não entrou em outros produtos, e “Balão apagado”, rara composição de Noel Rosa e Marília Batista, lançada em primeira mão num 78 rpm, em 1961.
Rodrigo Faour
Julho de 2020